17/08/2007

Seniores de Viana do Castelo publicam histórias das suas vidas

Seniors of Viana do Castelo publish the story of their lives



Doze seniores de Viana do Castelo escreveram a história das suas vidas, no âmbito de um projecto europeu que os ensinou também a interagir com computadores e a navegar na Internet.

Este projecto, que contou com participantes de mais três países europeus (Eslováquia, Luxemburgo e Espanha), terminou com o lançamento, em Viana do Castelo, de um livro com histórias marcantes das suas vidas, reunindo um total de 52 narrativas, publicadas na língua materna de cada adulto e também na língua inglesa. Estas histórias reflectem o percurso de vida das gerações mais idosas e constituirão testemunho e legado para as mais novas, que poderão não ter conhecimento das épocas correspondentes à juventude dos seus pais e avós.

05/04/2007

Viana do Castelo



O Centro de Formação Contínua de Viana do Castelo, sediado na Escola Secundária de Monserrate, em Viana do Castelo, Portugal, é uma das instituições parceiras neste projecto.

Conhece um pouco mais da nossa cidade:


Learn a little more about our city:

A HISTÓRIA DA MINHA VIDA

Todo o povo tem as suas narrativas
R. Barthes


O homem vive, constrói e formata as suas vivências em narrativas que a linguagem da memória e das palavras se encarrega de editar. São aventuras, enredos, mal entendidos, silêncios magoados, sofrimentos acumulados, peripécias, mas também as brincadeiras, os risos, as festas, as vitórias, os ganhos, e as pessoas, as pessoas que ficam na história de cada um.
São muitas as palavras que temos de emprestar à narração, os episódios sucedem-se, a vida passa-nos no ecrã da memória e assim vamos escrevendo páginas e páginas de sentidos já sentidos.
Foi desta forma que os seniores textualizaram os seus relatos de vida, foram muitos os episódios que descreveram, foram muitos os parágrafos de emoção, autenticidade e graça.
Porque a narrativa é também uma partilha, aqui ficam mais algumas histórias por eles contadas.

Gabriela Barbosa

INFÂNCIA


O MEU PIÃO

Recordo-me de um período da minha infância em que aquilo que mais desejava era ter um pião. A forma de o ter era amealhando uns tostões. E assim foi, juntei a quantia necessária e adquiri o meu brinquedo. Sonho concretizado!
Já como meu pião um dia fui com os meus amigos deitar o pião. Jogo que todos muito apreciávamos. Fomos para o cais, junto da casa do salva-vidas, porque estávamos mais protegidos do frio que então se fazia sentir em pleno mês de Fevereiro.
O jogo estava a correr bem, até que na minha primeira jogada, que jamais esquecerei, o pião em vez de bater no do meu amigo, guinou para o canal e caiu à água. Nem queria acreditar no que via, o meu pião cada vez mais longe, não podia ser, não podia perder o meu pião que me custou a adquirir e logo na primeira jogada que fazia com ele. Que desgosto! Então enchi-me de coragem e sem pensar em nada, despi-me, atirei-me à água e fui salvar o meu pião. Quando caí na água, foi como se tivesse ficado paralisado, a água estava gelado, podia ter morrido por hipotermia. Felizmente reagi ao frio e lá consegui, nadei para as escadas, cheguei ao cimo do cais com o peito cheio de ar e disse para todos: “aqui está o meu pião!”
Enquanto me vestia, o patrão do salva-vidas chamou-me a atenção para o facto de ter colocado a minha vida em perigo, ao que eu respondi: “ Mestre César, assim era conhecido, podia ter morrido, mas salvei a vida do meu pião!
João José Matias
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My Spinning Top

I recall a time in my childhood in which my only wish was to have a spinning top. I could only have it if I saved some money. That’s what I did. I got the necessary amount and bought my toy. A dream came true!
One day my friends and I went to the docks, next to the lifeguard’s house, to toss our spinning tops. There we were protected from the cold February weather.
Everything was OK until I started playing. I’ll never forget what happened then. I aimed at my friend’s spinning top, but I failed and my toy fell into the water. I couldn’t believe my eyes! My dream toy was floating away. It had been so hard to get it. I couldn’t lose it. I was completely devastated!
Suddenly I summoned up the courage and, without even thinking, I took off my clothes and jumped into the water. The water was so freezing that I could have died of hypothermia. Fortunately I was able to react and swam towards the stairs and when I reached the top I proudly said: “Here is my spinning top!”
While I was getting dressed, the lifeboat skipper angrily told me that I had put my life in danger. But I replied: “Skipper César - so we called him - I sure could have died, but I saved my spinning top!”
João José Matias
Mi peonza

Me acuerdo que durante un periodo de mi infancia mi único deseo era tener una peonza. Podría tener una sólo si ahorraba algo de dinero. Y eso es lo que hice. Reuní la cantidad necesaria y compré mi juguete. ¡Un sueño hecho realidad!
Un día fui con mis amigos al muelle, junto a la caseta del socorrista, a lanzar nuestras peonzas. Allí estábamos, protegidos del frío tiempo de febrero.
Todo iba bien hasta que empecé a jugar. Nunca olvidaré lo que sucedió a continuación. Apunté a la peonza de mi amigo, pero fallé y mi juguete cayó al agua. ¡No podía creer lo que veían mis ojos! Mi juguete se alejaba flotando en el agua. Era tan difícil recuperarlo. No podía perderlo. ¡Me sentía totalmente desolado!
De repente me armé de coraje y, sin tan siquiera pensarlo, me desnudé y me tiré al agua. El agua estaba tan fría que hubiera podido morir de hipotermia. Por suerte pude reaccionar y me acerqué nadando a las escaleras. Cuando salí, dije con orgullo: “¡Aquí está mi peonza!”
Mientras me vestía, el socorrista me dijo enfadado que había puesto mi vida en peligro. Pero yo contesté: “Capitán César –así lo llamábamos- seguro que hubiera podido morir, ¡pero salvé mi peonza!”

João José Matias

Mein Kreisel

Ich erinnere mich an eine Zeit aus meiner Kindheit, in der mein einziger Wunsch war, einen Kreisel zu besitzen. Ich konnte ihn nur haben, wenn ich Geld sparte. Das tat ich dann auch. Ich bekam den notwendigen Betrag zusammen, um mir mein Spielzeug zu kaufen. Ein Traum wurde wahr!
Eines Tages gingen meine Freunde und ich zu dem Kai direkt neben dem Rettungsschwimmerhaus um unsere Kreisel zu schleudern. Dort waren wir vor dem kalten Februarwetter geschützt.
Alles war in Ordnung, bis ich anfing zu spielen. Ich werde niemals vergessen, was danach geschah.
Ich zielte auf den Kreisel meines Freundes, aber ich verfehlte ihn und mein Kreisel fiel ins Wasser. Ich konnte meinen Augen nicht trauen! Mein Traumspielzeug schwamm davon. Es war so schwer gewesen ihn zu bekommen. Ich konnte ihn nicht verlieren. Ich war am Boden zerstört! Plötzlich brachte ich den Mut auf, ohne nachzudenken, zog ich meine Kleider aus und sprang ins Wasser. Das Wasser war so eisig, dass ich wegen Unterkühlung hätte sterben können. Glücklicherweise konnte ich rechtzeitig reagieren und schwamm zu den Stufen, als ich die oberste Stufe erreicht hatte, sagte ich stolz: „ Hier ist mein Kreisel!“
Während ich mich wieder anzog, erzählte mir der Skipper des Rettungsbootes ärgerlich, dass ich mein Leben in Gefahr gebracht habe. Aber ich antwortete nur: Skipper César – so nannten wir ihn – Ich hätte sicherlich sterben können, aber ich habe meinen Kreisel gerettet!“

João José Matias

Moja obľúbená hračka

Spomínam si na svoje detstvo, kedy mojim jediným želaním bolo mať detskú hračku nazývanú vlk. Jediný spôsob ako ju získať bol ušetriť trochu peňazí. A to je to, čo som aj urobil. Našetril som si potrebnú sumu a kúpil som si svoju obľúbenú hračku. Môj sen sa stal skutočnosťou!
Jedného prekrásneho dňa som sa spolu s priateľmi išiel hrať s mojou hračkou do prístavu hneď vedľa záchranárskej stanice. To bolo jediné miesto, kde sa v chladnom februári dalo hrať.
Všetko vychádzalo, kým nezačala naša hra. Nikdy na to nezabudnem, čo sa vtedy stalo. Mieril som so svojou hračkou na priateľa, ale tá mi namiesto toho spadla do vody. Neveril som vlastným očiam! Môj sen odplával. To bolo ťažké prijať. Nesmel som dopustiť takú stratu. Bol som úplne zničený!
Zrazu som nabral odvahu a bez rozmyslu som si vyzliekol šaty a skočil som do vody. Voda bola taká studená, že som mohol umrieť na podchladenie. Našťastie som bol schopný reagovať a plával som smerom ku schodíkom a keď som zachytil moju hračku, pyšne som povedal: „Tu je moja hračka!“
Ako som sa obliekal, kapitán záchranárskeho člna mi nahnevane vyčítal, ako som ohrozil svoj život. Ale ja som mu na to odvetil: „Kapitán César – ako sme ho volali – ja viem, že som mohol zomrieť, ale zachránil som svoju obľúbenú hračku!“

João José Matias

ANIMAIS NA MINHA VIDA

O MELRO CANTADOR

Era verão e a manhã estava quente. Tomava café no Bar da Paval, em Valença, quando chegou o Simão, cumprimentamo-nos.
Aproveitando a sua boa disposição, fui directo ao assunto que me tinha lá levado, o desejo de ter um melro lá em casa, e saber que ele mo poderia arranjar - É para já - disse solícito.
Dali fomos a casa do Jofre, em Fontoura que, prontamente, a pedido do Simão, tirou de uma gaiola um belo exemplar. Tome lá, leve-o consigo, só peço que o trate bem!
Claro que o vou tratar bem, respondi. Tenho uma gaiola com todos os requisitos, incluindo um tubo de rede sobre a marquise, para que possa esvoaçar à vontade.
De facto, o bicharoco ficou muito bem instalado, e do seu contentamento ele dava conta desde madrugada cedo, até ao cair da noite. Era um regalo ouvi-lo cantar!
Como rotina, a gaiola era limpa pelo menos duas vezes por semana. Para isso, o animal era retido no interior do tubo de rede, de modo a prevenir uma eventual fuga.
Quando terminava a limpeza numa quarta-feira ao fim da tarde, tocou o telefone, e estando só em casa fui atender. Não tenho já presente o que aconteceu, mas o certo é que nunca mais me lembrei do melro e da situação em que ele ficou.
No sábado seguinte, depois do almoço, preparava-me para assistir à final da Taça de Inglaterra, em futebol, quando de repente me lembrei de que algo estava errado. O silêncio, não augurava nada de bom. Corri então para a marquise e logo confirmei as consequências do meu esquecimento. Olhei para a gaiola e para o tubo de rede e vi que o melro estava morto. Não tive dúvidas de que tinha morrido à fome e à sede.
Assolado de grande tristeza, peguei nele, já rijo que nem uma pedra, embrulhei-o num jornal e coloquei-o mo balde do lixo.
A minha mulher, que entretanto chegou da rua, viu o melro no balde do lixo e com ar muito triste, perguntou: - como aconteceu isto? Nem lhe respondi. Não havia nada a fazer e o futebol já tinha começado.
Uns tempos depois, fui almoçar a casa do meu cunhado Salvador, a Moledo, e apercebi-me de uma conversa entre a minha mulher e a minha cunhada Maria do Céu.
Sabe Maria do Céu, tenho andado muito triste!
Então porquê? Perguntou.
Sabe que noutro dia, pus-me a pulverizar as plantas que tenho na marquise, com insecticida, para matar o piolho e acabei por matar o melro também!
Não me diga. E logo o bichinho que cantava tão bem!
Pois cantava, e o Octávio nem sonha que fui eu que o matei com tamanho descuido. Tenho esperança de que um destes dias arranja outro e tudo vai voltar à normalidade.
Não querendo que a minha mulher carregasse a culpa de um acto que não cometeu, aproximei-me e interrompi a conversa. Disse-lhe, que quem matou o melro fui eu, explicando-lhe, em pormenor, como tudo na realidade se tinha passado.
Teimosa, não queria aceitar a minha versão dos acontecimentos, insistindo, que foi a pulverização das plantas que matou o pobre animal. Por isso devia assumir a responsabilidade pela sua morte.
Com alguma paciência, voltei a explicar-lhe como é que tudo tinha acontecido. Não muito convencida, lá acabou por aceitar a minha versão dos factos, e finalmente conceder-me a autoria da morte do melro, deixando-me aliviado.
Ao longo dos tempos, quando recordava o assunto, pensei sempre se esta história, com dois protagonistas a reivindicar a autoria da morte do mesmo animal, não daria um bom argumento para um filme do Sherlock Holmes!
Octávio Pires
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THE SINGING BLACKBIRD
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This happened on a hot summer morning. I was having a coffee at Paval´s Bar, in Valença, when Simão arrived. We greeted each other.
Simão was good-humoured that day, so I came straight to the point which had taken me there. I wanted a blackbird and I asked him if he could get me one. He answered promptly: `Of course! Let’s do it right now!`
We went to Jofre´s house, which is in Fontoura, in order to get it. When we arrived there, Simão asked Jofre if he could offer me a blackbird. Jofre took a nice bird out of the cage and said: `Here it is! Take it with you! I just ask you to treat it well!` I replied `Of course, I will! I have a cage ready with every required accessory, including a net tube towards the glass balcony, so that the bird can flutter and feel free.
The blackbird really liked the spot and felt comfortable in that new atmosphere. The bird showed its contentment singing from dawn to sunset. It was really nice hearing it sing!
The blackbird cage used to be cleaned at least twice a week. While the cleaning process occurred, the bird had to be kept inside the net tube so that it couldn’t fly away. On a Wednesday evening, the telephone rang while I was cleaning the cage. There was no one else at home, so I answered it. I don’t remember quite well what happened that day, but the fact is that I completely forgot the bird and how it had been left.
On Saturday, after having lunch, I got everything ready to watch the England World Cup Final Tournament on TV, but…all of a sudden I had a bad feeling… There was too much silence, something was wrong… I ran towards the glass balcony and then I realised the consequences of my absent-mindedness. I looked at the cage and the net tube and I saw the blackbird lying dead. No doubt that it had died of hunger and thirst. I felt a great sorrow and pain inside! I picked it up, it was already stiff as a board, wrapped it in a newspaper and threw it into the rubbish bin. When my wife arrived home, she saw the dead blackbird in the dustbin and asked me desolately: `How did it happen? ` I didn’t even answer. There was nothing we could do to solve the situation. Meanwhile, the football match had already started….
Some time later, we went to my brother-in-law’s house for lunch. He lives in Moledo. While we were having lunch that day, I heard my wife saying to Maria do Céu, a sister-in-law of mine: Do you know something? I’ve been really sad!´ ´Why?´, she asked me. `Some days ago I sprayed the plants with an insect-repellent and I ended up killing the blackbird!´ `Oh, really? It sang so beautifully!...”´, answered Maria do Céu. ´Yes, it did! … Octávio can’t even imagine that it was me who killed it in such a negligent way! ´I hope he can get another one and things will be normal again! I didn’t want my wife to hold the burden of guilt for something she hadn’t done. I approached them and interrupted their talk by telling that I was the one to be blamed for the blackbird’s death. Then, I explained the way it all had happened.
My wife is really stubborn, so she didn’t want to believe my story, insisting that it was the insect killer that had made the poor bird die. Therefore, she assumed all the responsibility for that.
Very patiently, I explained to her what had happened over and over again. She didn’t seem convinced, but she eventually accepted my version of the bird’s death. She made me feel relieved for acknowledging the true fact.
As time passed by, whenever this episode came to my mind, I always thought that this story with two main characters claiming responsibility for the death of the same animal might be a good storyline for a Sherlock Holmes’s film.

Octávio Pires

OS TEMPOS DE ESCOLA


OS TEMPOS DE ESCOLA

Fui uma criança como todas as outras. Começo por ir à escola primária todo contente para ir aprender a ler e escrever, mas logo começo apreensivo ao ver um professor mal-encarado com cara de poucos amigos.
Os dias foram correndo até que um dia esse mesmo professor viu que eu escrevia com a mão esquerda, chamou-me ao quadro negro e aí é que começou o trauma que ainda hoje me persegue. Prendeu-me a mão esquerda com uma corda e obrigou-me a escrever com a mão direita. Isto levou dias, talvez semanas, sempre que era chamado ao quadro tinha que escrever com boa caligrafia senão estava a levar uns tabefes, outra vez umas reguadas.
Para mim foi um ano traumatizante!
Quando cheguei ao fim do ano lectivo, esse mesmo professor reprova-me.
Felizmente mudei de professor, e então passei a escrever como me apetecia, fiz a quarta classe, hoje 4º ano. Continuei a estudar, fiz o ciclo preparatório, hoje 6º ano. Depois fui para o curso da Indústria (Serralheiro Mecânico), que não consegui acabar.
Foram tempos difíceis!

Vítor Gigante

MY TIMES AT SCHOOL
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I have always been a normal child. At first, I felt happy to attend primary school, because I was anxious about learning to read and write, but soon I became fearful when I met my bad-tempered, grouchy teacher.
As time went by, my teacher realised suddenly that I wrote with my left hand. He asked me to go to the blackboard and that’s when the trauma started. He tied my left hand with a rope and forced me to write with my right hand. This situation went on for days, maybe for several weeks and every time I had to go to the blackboard, I had to show excellent handwriting, otherwise the teacher would slap my face or hit me with a wooden ruler.
That year was actually a complete trauma!
I didn’t pass that school year! Fortunately, the following year I had another teacher and then I could write the way I felt like. I finished 4th grade. I continued my studies and finished elementary school. Then I attended an industrial course in locksmithing and automotive mechanics, which I have not yet completed.
Those were hard times, indeed!


Víctor Gigante

ANIMAIS NA MINHA VIDA


UM GATO AMIGO NA ADOLESCÊNCIA

Certo dia cheguei a casa às duas horas da tarde, já tinham passado as horas do almoço, minha mãe tinha deitado a comida no prato.
Eram batatas cozidas com bacalhau, mas estava tudo frio, eu comecei a embirrar e disse-lhe que não comia. Minha mãe não ligou e saiu para a rua.
Deixei a minha mãe sair e resolvi voltar para a mesa almoçar, quando lá cheguei verifico que a comida tinha desaparecido, mais propriamente o bacalhau. Foi o gato! O meu gato, o gato que eu tanto estimava, um animal grande e bonito, todo malhado, parecia um gato bravo.
Apesar da amizade que me ligava àquele bicho, a raiva que senti foi tanta que peguei na vassoura e dei-lhe quatro vassouradas, ele não gostou, virou-se e atirou-se a mim. Nunca vi um gato tão assanhado, dizem que os gatos têm sete vidas, aquele tinha as vidas todas, estive em aflições.
Abri a porta da cozinha e o gato saiu disparado pelo corredor, levando a janela da sala com ele. Desfê-la toda, foi mais um prejuízo que eu tive que pagar do meu bolso, naquele fatídico dia.
Ninguém queria acreditar no que havia acontecido, mas como o gato não aparecia, foram aos poucos acreditando.
O gato andou desaparecido mais de uma semana, quando apareceu mal me via, bufava para mim e fugia.
Nunca me perdoou a minha birra da adolescência, deixei de ter um amigo!

Manuel Gonçalves

A FRIENDLY CAT
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One day I arrived home at two o’clock in the afternoon. My mother had left some food on a dish and as it was already late, It was cold. The meal consisted of cod with boiled potatoes. I got annoyed with the situation and told my mum I wouldn’t eat lunch. My mother didn’t care and went out.
I waited till she went out and eventually decided to sit down again to have lunch. When I returned to the table, I saw that the food had vanished, all the cod had gone. It was the cat! My cat, which I truly cared about, a beautiful big tabby animal, had behaved badly.
Although we had a close relationship, at that moment I felt so much rage that I took the broom and hit the cat four times. The cat didn’t like it, so it turned round and fought back, throwing itself at me. I had never seen such an enraged cat! It is said that cats have seven lives, that one had countless lives. I was really distressed!
I opened the kitchen door and the cat ran out towards the corridor shattering the door window into pieces. That was another expense I had to pay by myself on that fatidic day.
No one could believe what had happened, but as the cat didn’t show up again, they started accepting the situation.
The cat had been away for more than a week. When it returned, it kept looking at me apprehensively, growling at me and then simply running off.
The cat has never forgiven me for my sulky, teenage attitude! I lost a friend, indeed!


Manuel Gonçalves

PESSOAS ESPECIAIS NA MINHA VIDA


Amigos Para Não Esquecer – 1968/70

Esta foi uma fase da minha vida que eu não vou esquecer, por estranho que pareça, é nestes momentos que por vezes nós encontramos algo que só acontece uma vez na vida.
Em pleno serviço militar, quando acabei a especialidade fui colocado na E. P. A. em Vendas Novas, lugar e momento em que fui descobrindo a mais sincera amizade. Havia apenas 4 pessoas recém chegadas, era de todo necessário começar a fazer novos conhecimentos, a começar pelos vizinhos de camarata.
Foi assim que começou a minha história.
O meu vizinho mais próximo era o Joaquim Gomes, soldado como eu, vindo dos lados de Viseu. Feitas as primeiras apresentações, principia uma camaradagem sem limites.
Durante dois anos vivemos o que eu chamo amizade entre dois jovens, tudo era partilhado.
O Joaquim tinha a sorte de ter uma das irmãs a viver perto do quartel, enquanto eu tinha de esperar no mínimo três meses para visitar os meus familiares. Incomodava o meu amigo sair ao fim de semana e ver-me a ficar no quartel. A partir daí, começou a fazer todas as tentativas para me levar com ele para a casa da irmã, que não me conhecia de lado algum. Não foi fácil para mim aceitar o convite. Um dia lá fui, o meu amigo era incansável para que eu me sentisse bem no seio daquela simpática família.
À medida que o tempo passava aumentava a nossa cumplicidade até ao dia em que o serviço militar chegou ao fim. Três anos passados, já era tempo! Com a alegria própria dos últimos momentos, vivemos aquelas horas com muita azáfama por nos sentirmos livres de novo. Foram estes os últimos momentos que estive com o Joaquim. Ele foi mais despachado do que eu, cruzou-se comigo na parada e demos um abraço prometendo que nos contactaríamos em breve. Nunca mais vi, nem ouvi o meu amigo, a verdade é que ele iria residir para Setúbal e logo que estivesse instalado me enviaria o seu endereço. Ainda não perdi as esperanças de nos encontrarmos o que seria para mim, concerteza, uma grande alegria.
Esta foi sem dúvida a maior amizade da minha vida.

José Domingos
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UNFORGETTABLE FRIENDS
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Strange as it may seem, I’ll never forget this period of my life because moments like this one only happen once in a lifetime.
While I was doing my military service and after qualifying in my speciality, I was sent to Vendas Novas` barracks. There I developed the most genuine friendship ever. We were just four soldiers, newly arrived and I felt I needed to meet new people, so I began getting to know them.
That’s how things got started. My true mate was Joaquim Gomes, another soldier from the suburbs of Viseu.
We became good friends to the point of sharing everything we had.
Fortunately (for him), Joaquim had a sister living near our barracks. On the other hand, I could only see my own family every three months. At the weekend my friend would be worried and sad for leaving me all alone at the barracks. Little by little he tried to convince me to stay at his sister´s at the weekend, but being a complete stranger to her, I felt a little uneasy and found it hard to accept his invitation. Eventually though I did. Joaquim tried his best to make me feel comfortable amongst his friendly and welcoming family.
As time went by, our bond became stronger and stronger till the day we left. All in all we spent three years of our lives together. We felt great going back home! The Just before leaving we were very excited and anxious because we were about to be free again. I have never seen Joaquim again. He managed to pack his things before me, so we only met later at the parade ground. We gave each other a hug and promised to see each other again. We haven’t been in touch since. He told me that he would move to Setúbal and as soon as he had settled down, he would send me his new address. I haven’t given up the hope of seeing him again. That was the nicest friendship I have ever had.

José Domingos

TRADIÇÕES, COSTUMES E FESTAS


As tradições, costumes e festas da minha aldeia

As festas populares de S. Lourenço faziam parte das tradições populares da minha aldeia. Aí toda a gente se encontrava, chegavam pessoas de outras aldeias e lugares para participar nesta festa que era de todos.
As festividades começavam logo de manhã bem cedo com a chegada das bandas de música e com as cerimónias religiosas. Vestíamos roupas novas e bonitas para a ocasião. Então saía do adro da igreja a procissão do Santo com os anjinhos e as demais figuras habituais onde toda a gente participava.
Depois de acabar as cerimónias religiosas começava a tocar a música popular. Juntávamo-nos todos de volta do coreto a dançar e a ouvir cantar ao desafio. A animação prolongava-se por todo dia. Raparigas e rapazes solteiros conviviam e arranjavam namorados. Ao final do dia voltava-se a casa para o jantar com tudo que havia de melhor: cabrito assado no forno de lenha com batata e salada e muitas mais coisas e a sobremesa era leite-creme, aletria, filhoses e a bebida que acompanhava o repasto era o vinho verde branco, tinto e água. No final do jantar voltava-se à festa para conviver e assistir ao fogo de artifício. A festa normalmente prolongava-se pela noite dentro. Assim se passavam as festas.
Depois seguia-se uma nova semana.
Os domingos à tarde na minha aldeia eram passados no largo da igreja onde se juntava toda a mocidade. No adro da igreja juntavam-se os moços das aldeias vizinhas a tocar concertina e dançávamos até ao anoitecer. Como forma de agradecimento aos tocadores no final da tarde todos aqueles que se encontravam no adro da igreja juntavam-se e tiravam uma subscrição.
Nós, as moças ficávamos todas contentes porque tínhamos passado uma tarde bem passada.
Assim se passavam as festas tradicionais de S. Lourenço e os domingos na minha aldeia, em Marinhas, Esposende.

Fernanda Loureiro
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MY VILLAGE TRADITIONS, CUSTOMS AND FEAST DAYS
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The emblematic feast of our patron saint `St. Laurence` was part of my village’s popular traditions. On this day, people get together with those from nearby villages. This feast is supposed to be celebrated by everyone!
This festivity start early in the morning with a marching band and religious ceremonies. We used to wear fancy new clothes on that special occasion. A procession starts from the churchyard, bearing the patron´s image, angels and other holy pictures. Everybody participates in this holy procession.
After the religious ceremonies had come to an end, we used to listen to folk music. We would gather around the bandstand and dance, listening to typical `cantares ao desafio` ( when two folk singers take turns to make up a rhyme scheme and challenge each other, mostly using promiscuous verses). This lively atmosphere continued all day long. Single boys and girls met each other and flirted. At the end of the day we used to go back home and have a good dinner, which, among other things consisted of, wood oven roasted kid with potatoes and salad. We drank homemade red or white wine and water. For dessert, we used to have leite-creme, vermicelli and filhoses (similar to pancakes). After dinner, we would go back to the festival to enjoy ourselves and watch the fireworks. The feast usually went on till late at night. That’s the way it used to be.
Then, another week passed by. In my village, we used to spend our Sunday afternoons at the churchyard; that was the youngsters´ meeting point. Some boys from nearby villages would come along, too. Some would play the concertina and we would dance till it got dark. As a way of showing our gratitude to the concertina players for their performance, we gathered some money and gave it to them. We, the girls, were very happy because we had a lot of fun on those afternoons.
This is how the traditional feast of St. Laurence and our Sunday afternoons used to be in my village called Marinhas, in Esposende.
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Fernanda Loureiro

MOMENTOS INESQUECÍVEIS NA MINHA VIDA


Momentos inesquecíveis da minha vida

Foi no ano de 1965, tinha apenas 18 anos de idade, aconteceram momentos inesquecíveis na minha vida que jamais esquecerei.
Nessa altura existia a Mocidade Portuguesa, organização que fazia os concursos nacionais e internacionais de trabalho, trabalhando eu de soldador nos Estaleiros Navais de Viana, fui um dos escolhidos para ir representar a Empresa no concurso nacional de trabalho em Lisboa, tendo ficado em primeiro lugar. Desse modo fiquei seleccionado para ir representar o País na especialidade de soldadura, concurso internacional de trabalho que se realizaria na Escócia. Viria a conseguir uma classificação muito honrosa, o terceiro lugar, que me deu direito a uma medalha de bronze, assim como prestígio para mim e para a Empresa. Como é de calcular, este momento da minha vida marcou-me profundamente, fiquei orgulhoso e feliz pelo acontecido, jamais poderei esquecer.
Tenho que reconhecer, que a Empresa onde trabalhei durante 40 anos compensou-me monetariamente, aumentando o meu salário, prova evidente dos bons serviços que tinha acabado de prestar, devo confessar que tudo foi como um sonho. Com passar dos tempos tudo passou ao esquecimento, ao longo dos anos houve várias reestruturações e mudanças nas chefias da Empresa, como tal foram-se esquecendo dos bons serviços que eu prestei, de modo que nos últimos anos que trabalhei na Empresa não ter sido apreciado o meu desempenho, mas enfim, a vida é assim!
Contudo, nunca deixei de dar o meu melhor em prol da Empresa, até ao último momento que lá trabalhei, pois foi aí que eu cresci e me fiz homem para a vida.

Manuel Soares

Unforgettable moments of my life
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When I was eighteen years old, in 1965, I experienced some wonderful and unforgettable moments.
At that time, there was the Portuguese Youth Movement. This association was responsible for national and international work contests. At that time, as I was working as a welder at Viana do Castelo´s Naval Dockyard, I was chosen to represent my company at a Lisbon’s National Contest of Work. Having been awarded the first place, I was selected to represent my country in the International Contest of Work which would take place in Scotland. I reached an outstanding position, namely, third place. Therefore, I was awarded a bronze medal, which was a prestigious experience for both myself and for the reputation of my company. That episode has definitely touched my life very deeply. I felt really happy and proud of what I had achieved. I will never forget this experience as long as I live.
I must confess that the company in which I have worked for 40 years has rewarded me in financial terms, having raised my salary. That was true evidence of the good service I gave. That was like a dream come true. As time went by, this episode became overlooked. For years there has been considerable rearrangement and a great change in the company’s main business interests. The role that I had once played has just been forgotten. During the last years I’ve worked there, my performance has been neglected. Well… that’s life!
Nevertheless, I always did my utmost on behalf of the company until the very moment I left, because it was there that I matured into real man!
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Manuel Soares

VIAGENS


História de viagem

Numa viagem de regresso a casa vindo das Caraíbas desembarquei em Miami na Florida, já no aeroporto fui a um café-restaurante para comer e beber uma pequena refeição, no balcão pousei a minha bolsa portátil onde transportava o dinheiro que consegui ganhar em sete meses de trabalho, não era habitual eu pousar minha bolsa em lado algum mas aconteceu naquele dia! Pousei-a e não mais me lembrei dela. Paguei a conta com dinheiro do porta-moedas e dirigia-me para a porta de embarque do avião quando de repente ouvi alguém chamar! Vi um braço no ar com a minha bolsa na mão! "Please! Please!" Eu olhei e perguntei! "Can y elp you?" - "Yes", disse a mulher de feições asiáticas – "Takes, this portable bag is yours!" quando vi a minha bolsa disse! "Ah! Olha é a minha bolsa!" Fiquei bloqueado sem dizer palavra, agarrei a bolsa e quando lhe disse – "thanks a lot" – já não a vi mais. A bolsa continha as minhas economias de sete meses de trabalho a bordo, era uma bela quantia.
Quando entrei no aeroporto em Miami a minha cabeça já tinha esquecido este episódio e pensava apenas em Portugal!

Manuel Lomba
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A journey episode
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On the way back from a journey to the Caribbean, I disembarked in Miami, Florida. While I was at the airport, I went to a snack-bar to have something to eat and drink. I put my hand bag on the counter which contained my salary from the last seven months. I wasn’t used to laying my bag anywhere but it really happened that day. I put it down and simply forgot to pick it up again. I paid the bill with the money I had in my wallet. While I was moving towards the departure gate, I heard someone cry out `Please, please!`, with her arm raised and holding my bag. I looked at her and asked, ´Can I help you?` `Yes`, replied the Asian-looking woman. ´Take it, this hand bag is yours!´ When I saw my bag, I said `Oh, that’s my bag!´ I was stunned and speechless. I picked up my bag and when I said `thanks a lot`, the Asian woman had already disappeared.
That bag had all of my savings, all the money I had earned for seven months of work onboard . It was a large amount of money!
When I got into the plane, I had already forgotten this incident. I had my mind set on Portugal.

Manuel Lomba

TRADIÇÕES, COSTUMES E FESTAS

A matança do porco na casa dos meus pais

Quando chegava o mês de Novembro, era altura de pensar em matar o porquinho, que em casa era criado para alimento da família durante o ano.
Chegado o dia começava a azáfama: seis horas da manhã e já toda a família estava a pé, havia que ter tudo em ordem porque o matador, Sr. António (Mascôto de apelido), não tardava nada a chegar.
O meu pai não gostava muito de ver matar, contudo e porque o porco pesava sempre mais de dez arrobas tinha de ajudar a segurá-lo uma vez que o animal até ser imobilizado fazia muita força e eram precisos sete a oito homens, normalmente recorríamos à ajuda dos vizinhos.
Morto o animal lá vinham os comentários do matador vitorioso: “foi como um tiro, e sangrou bem!” Entretanto a minha mãe, que mexia o sangue para não coagular, dizia: “vá passa a (tranca) e os figos secos a essa gente antes de começar a chamuscar”. E assim com palha de centeio que era acesa em pequenos molhos e batida contra o porco se chamuscava o animal até a pele ficar loirinha. Depois lavava-se com água quente e sabão, esfregando com uma pedra escolhida a jeito.
Após este trabalho, realizado no exterior, era altura de levar o porco para o interior da casa a fim de ser pendurado, aí tiravam-se as tripas que ainda quentes eram desfiadas para serem lavadas e raspadas num ribeiro de água limpa e corrente, depois eram postas em água sal e limão, de seguida eram cheias com carne, cebola picada e sangue dando origem às famosas: chouriças sanguinhas. Faziam-se também os saborosos salpicões, estes de carne mais nobre, cortada aos pedaços e posta em alguidares com vinho e especiarias durante dois dias.
O porco ficava pendurado durante vinte e quatro horas a fim de arrefecer a carne para poder ser salgada, pois era a maneira de então esta ser conservada durante o ano.
No fim destas tarefas era feito o sarrabulho que era um almoço melhorado onde normalmente se aproveitava para juntar a família. Todo este ritual era feito com muita alegria.
Havia agora que pensar em juntar dinheiro para comprar outro porco pequenino de modo a proceder ao mesmo ritual no ano seguinte.
Osvaldo Cruz
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THE BUTCHERING OF THE PIG

By November, we had started thinking about slaughtering the pig, which had been reared for the purpose of feeding the family throughout the year.
The hectic atmosphere started very early in the morning. At half past six all the family members had already woken up and were prepared for the big event. They had everything ready for the butcher (slaying is very violent, usually reserved for murder, personally I wouldn’t use it for a butcher who was just doing his job) . Mr. António, nicknamed Mascôto, was about to come up!
My father didn’t like to watch the pig being slaughtered. However, he had to help the other men to seize the pig. The animal weighed more than 150 kg (about 300 pounds) and it resisted strongly till the moment it was immobilised. It took seven strong men to get hold of it. We usually asked our neighbours to help.
After the slaughter, the butcher boasted, ´It got it straight in the heart! And it bled nicely!’ Meanwhile, my mother who was stirring the blood so not to coagulate said, ´Come on! Bring the mug and serve these people with wine and dried figs, before they start singeing the pig!` They used bunches of rye straw which were lit first and then they fanned the pig with them to scorch the skin. They had to do this as many times as possible for the skin to shine. After this, they washed the pig with warm water and soap, rubbing its skin with a flat stone.
After the out-door procedures, they took the pig into the house to be hung. Firstly, they removed its guts, which were still warm and then these were emptied and cleaned. The guts were later taken to a sweet water creek. The women washed and scraped them. Then, these were immersed in water with salt and lemon for a while. Next, they’d be filled with meat, minced onion and blood. These ingredients produce the renowned blood sausages called Chouriças Sanguinhas.
Besides the so-called Chouriças Sanguinhas, we also used to make tasty pork sausage using fine meat cut into pieces and immersed in a bowl with wine and spices for two days.
The pork was left hung for twenty-four hours, so that the meat could cool. Finally, the meat was salted to be kept throughout the year.
After all these chores, the family would finally gather together for a nice lunch. We used to eat Sarrabulho (a typical Portuguese dish, a kind of heavy soup made with bread or rice, blood and pork meat cut in very small pieces). Everybody had a lot of fun sharing in this ritual.
Soon after this communal celebration, people used to start saving money to buy a piglet, so that this ritual could happen again the coming year.

Osvaldo Cruz

TRADIÇÕES, COSTUMES E FESTAS


TRADIÇÕES, COSTUMES E FESTAS

No sábado de Aleluia pelo meio-dia era realizada na Praça da República a queima do Judas e eu ia sempre com o meu falecido avô. Lembro-me como se fosse hoje e já lá vão cinquenta anos, a Praça da República com o seu separador central, feito com pedras de calcário e basalto, era muito bonita!
Nessa altura existia a casa “Figueiredo”, onde se compravam os selos, o tabaco avulso etc.; o bazar “Couto Viana”, uma loja de brinquedos que eram feitos de madeira e chapa laminada; também havia o quiosque da “Lúcia” onde ao domingo ia comprar o jornal Primeiro de Janeiro, porque trazia um suplemento cok cromos de colecções várias como a História de Portugal o Príncipe Valente etc. Existia também o Banco de Portugal, que é hoje o Museu do Traje.
O Judas representava uma figura pública que por motivos diversos o povo queria julgar e castigar, como se estava em plena ditadura salazarista, estas personagens eram alegóricas.
O fogo, introduzido no Judas, era preso, o que tornava o espectáculo muito bonito e nós miúdos delirávamos com tudo aquilo e não parávamos de bater palmas.
Hoje continua-se com esta tradição de Queimar o Judas, a Junta de freguesia de Monserrate fá-lo, porém em moldes diferentes. O fantasma da censura já não persegue ninguém e assim há mais espaço para a liberdade e criatividade na realização desta tradição popular.
Outra tradição muito apreciada pelos católicos, aqui na região Norte, é a visita do compasso. No domingo de Páscoa, realiza-se nas freguesias da cidade e do concelho o compasso Pascal ou a saída da Cruz, um costume que tem como objectivo levar Jesus Cristo ressuscitado a visitar as casas. O padre dá a beijar a imagem de Jesus a todos os presentes e depois há os comes e bebes porque nessa altura não se olha a meios para se ter uma mesa farta, convidam-se os familiares mais próximos e os amigos.
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João Branco

TRADITIONS, CUSTOMS AND FEASTS

Every Alleluia Saturday, at midday, in the Republican Square, Judas* was set on fire to be punished. I used to join the event with my grandfather, who has since passed away. It had been fifty years since the festivity had happened. I remember that scene as if it were yesterday. The Republican Square is ornamented by a separator made of limestone and basalt stones. It is beautifully decorated.
In those days there was Figueiredo´s shop, where stamps and shredded tobacco could be bought. There was also Couto Viana´s bazaar, a toyshop that sold wooden and laminated-plate, toys. Nearby, there was a newsagent’s called Lucia where I used to buy the Primeiro de Janeiro newspaper on Sunday. With the newspaper came a stickers’ supplement from several collections such as the History Portugal, Prince Valiant, and Banco de Portugal (which is now the Costume Museum).
Judas represented a public figure who for several reasons the crowd wanted to put on trial and punish, which was commonplace under the Salazar’s dictatorship. This character was simply symbolic. Judas was put on fire under a fireworks display, which made the show even more spectacular. As kids, we used to go crazy and couldn’t stop clapping our hands.
Nowadays the tradition of burning Judas is still alive. The Monserrate´s parish council still practises this ceremony, but in a different way. The spectre of censorship doesn’t exist anymore. Therefore, in order to make this popular tradition come true, there’s much more freedom and creativity.
The Easter visit is another much appreciated tradition by the Catholics, here in the northern part of Portugal. On Easter Day this event takes place in every parish of the city. The aim of the Easter Visit custom is to take the resurrected Jesus into Christians` homes. The priest takes the cross to people’s homes to be kissed where he is welcomed with food and drinks. On that occasion families have a lavish banquet and invite their close relatives and friends to join them.

* a symbolic public figure who is punished by the people

João Branco

ANIMAIS NA MINHA VIDA


O animal da minha vida

Chamava-se Tutu, era uma cadela com apenas três meses, toda preta e com as patas brancas, que passou a fazer parte da minha família em 1972, quando já vivia em França. Cresceu com os meus filhos e era membro da família, companheira inseparável e meiga.
Todos os anos, eu vinha de férias a Portugal, ela ficava entregue aos cuidados de uma vizinha. Durante os primeiros dias, após a minha partida, a Tutu recusava comer e esperava por mim à porta de casa. Só passados alguns dias, é que ela aceitava comer e entrar para dormir. Quando regressava, ela ficava feliz, não parava de correr de alegria e não me largava.
Em 1983, decidi, com a minha família, regressar a Portugal. A Tutu fazia parte da bagagem. Durante a viagem, feita numa carrinha Peugeot J7, ela teve um comportamento estranho: quando fazia paragens nas áreas de serviço, todos podiam sair da carrinha, mas eu, como era o condutor, não me podia sequer afastar-me porque ela começava logo a uivar, pensando que os ia abandonar.
A viver em Portugal, a Tutu passou a ouvir uma nova língua. Foi um período de adaptação, porque ela não obedecia às ordens dadas em português, só percebia francês, mas como era uma cadela inteligente, meses depois, a Tutu passou a entender tudo.
Em 1985, esta cadela criou um pinto como se fosse sua cria. A Tutu tinha parido um cão que morreu à nascença. Ficou deprimida e como nessa altura tínhamos uma galinha que tinha chocado um pinto e logo depois morreu, a Tutu adoptou esse pinto. Ela aconchegava-o e apanhava-o coma boca, só não o alimentava porque não podia.
Depois de um problema de saúde, em 1989, a Tutu deixou-nos, toda a família chorou a sua morte e ainda hoje é considerada “ o animal da nossa vida”.

Manuel Oliveira Parente


The pet of my life


Tutu was a black and white-pawed three-month old she-dog and she became part of my family in 1972. I was living in France then. She grew up with my children and was considered a member of the family. She was a very dear and loyal companion.
Every year, I used to go to Portugal on vacation. A French neighbour of mine used to take care of her. Soon after my departure, Tutu initially refused to eat and would wait for me at the front door. Only a few days later would she behave normally, accepting food and coming in to sleep. On my return, she would be happy and joyful. She would run around me, over and over again.
In 1983, my family and I decided to move back to Portugal. This time, Tutu was to come along with us. I drove a Peugeot J7 on the journey and behaved strangely every time I stopped at the highway rest areas. She began howling the very moment I got out of the car. She was afraid of being left behind, I guess. Therefore, I had to stay in the car with her.
From the moment we arrived, Tutu had to get acquainted with a new language. She couldn’t take orders, because they were given in Portuguese and not in French, but keen as she was, months later she could understand us.
In 1985, Tutu gave birth to a dead puppy, thus becoming mournful and distressed. Fortunately, we had a chick whose mother had died, so Tutu raised it as her own. She used to bring it along with her, grabbing in her mouth. Feeding it was the only thing Tutu couldn’t do at all.
In 1989, Tutu had a serious health problem and she soon passed away. Everybody cried for her. Tutu is still considered the pet of our lives!

Manuel Parente

MOMENTOS INESQUECÍVEIS NA MINHA VIDA


Nobreza de alma

Um dia fui ao Porto, como ia muitas vezes, ao médico da asma. Era ainda cedo para a consulta e fui ao café tomar o pequeno-almoço. Enquanto esperava que me atendessem, entrou uma menina com uma aparência de pobreza extrema, muito suja, e com uma cara de passar fome. Dirigiu-se a uma mesa onde estavam cinco homens que conversavam e riam em gargalhadas altas. Tinham tudo de bom para um pequeno-almoço à sua frente.
Pedia uma esmolinha para comer, estava cheia de fome. Os senhores que estavam na dita mesa, continuaram a rir na mesma e sentindo-se incomodados pela presença daquela pobre criança, que continuava pedindo, e não ia embora, chamaram o empregado para a pôr fora do café.
Levantei-me da mesa, peguei na menina pela mão, levei-a à casa de banho, lavei-lhe a cara, as mãos, penteei-a e perguntei-lhe porque pedia. Ela disse-me que toda a sua família havia sido posta fora de casa, porque o pai tinha tuberculose, deixou de poder trabalhar e não puderam pagar o aluguer. Viviam debaixo de uma barraca perto da ponte D. Luís, tinha mais três irmãos. Perguntei-lhe então se queria dinheiro ou comer. Respondeu de imediato que queria comer. Levei-a para a mesa, sentei-a a meu lado, chamei o empregado, pedi um copo de leite e torradas e dei-lhe. Era o que ia pedir para mim. Como não tinha mais dinheiro no bolso, a não ser o do bilhete para o regresso de volta a Viana, fiquei sem pequeno-almoço, até às 14h, mas com o coração cheio de alegria por fazer feliz ainda que por momentos uma criança! Ela agradeceu-me com um beijo. Dizendo obrigada por ser minha amiga. Ainda hoje o sinto, por ser o mais grato que recebi.
Um senhor que estava sentado numa mesa a um canto levantou-se, veio ter à minha mesa e disse-me: -Gostei da sua nobreza! Deu-nos a todos nós uma boa lição. Agradeci, dizendo: - espero que a ponha em prática. Sorriu! E saiu com uma expressão de repúdio virado para a mesa dos homens. Fui levar a menina à porta, sorri-lhe, ela disse-me adeus com as mãos e atirou-me outro beijo sorrindo! Tenho a certeza que se for viva nunca vai esquecer aquele momento. Porque eu também nunca vou esquecer.
Foram momentos como este que me ajudaram ser, a mulher que hoje sou!

Maria José

Nobility of the soul

One day I went to Porto, as I was used to, for a medical appointment. I arrived there very early, so I decided to go to a café to have breakfast to kill some time. While I was waiting, a little girl came in. She was very poor, she wore very filthy clothes and looked famished. She approached a table where there was a group of five men chatting and laughing out loud. They were having a first-class breakfast.
The girl was begging them for money. She was starving. The men sitting around that table just ignored her and kept on laughing. She begged for money again. They looked down on her and as she didn’t leave, they asked the waiter to take her out of the café.
I stood up and took her by the hand to the bathroom. I washed her face and hands, combed her hair and asked her the reason she was begging. She told me that all her family had been evicted, because her father suffered from tuberculosis and as he had lost his job, they couldn’t afford to pay the house rent. Therefore, they were living in a slum, under D.Luís Bridge. She had three brothers. I asked her if she wanted money or food. Immediately she replied that she wanted food. I took her to the café table and sat her down by my side. Then I called the waiter and asked him to bring her a glass of milk and some toasts. That was the breakfast I was supposed to have. As I didn’t have any extra money on my pocket, except the amount for my return ticket to Viana, I couldn’t have my breakfast. I didn’t eat anything till 2 o’clock in the afternoon, but in return, my heart was full of joy for having helped that little girl, even if it was only for a single moment.
The girl showed her appreciation with a kiss and thanked me for being her friend.
I still remember that moment. That little girl’s attitude had been the most gratifying thing I have ever experienced.
While I was sitting at that table, an old man came to me and said, ‘I appreciated your noble deed! You have given us a good moral lesson!’ I thanked him and answered, ‘I hope you can make it come true!’ He smiled and went away. He left the café, looking at those other men in despise. I took the girl out of the café, I smiled at her and she said goodbye, waving her hands and sending me a smiling kiss. I’m sure that, if she is still alive, she hasn’t forgotten that moment. Neither will I.
Moments like that have helped me to transform myself into the woman I am today!

Maria José

MOMENTOS INESQUECÍVEIS NA MINHA VIDA


Noite trágica no mar da Mueda

Era dia de S. Pedro, 29 de Junho de 1968, dia em que ofereci uma prenda à minha namorada. Nesse dia, cerca da meia-noite, juntei-me aos camaradas, que constituíam a tripulação do barco “Jorge de Jesus”. Efectuados os preparativos de partida para a faina, zarpamos rumo ao pesqueiro, no mar da Mueda, a norte da cidade galega de Vigo.
Estávamos cansados, então toda a tripulação, com excepção do homem do leme, de nome João Peres, desceu aos beliches para descansar. Depois de duas horas a navegar, ouviu-se um grande estrondo. O barco tinha sido abalroado, o que provocou um acordar sobressaltado, como é natural num caso destes. Todos subiram ao convés, confirmando-se o abalroamento provocado por um navio de carga, de pavilhão Norueguês, de nome “Byard”.
Com o embate, o nosso navio, Jorge de Jesus começou a afundar-se pela ré, tendo cada um dos tripulantes iniciado, com grande angústia, o seu próprio salvamento, uns agarrados ao que restava da “gamela” outros a latas e tábuas soltas.
Durante cerca de 4 horas, foi um batalhar entre a vida e morte e dos 11 que compunham a companha, apenas 6 escaparam. Um atrás de outro, foram 5 os camaradas que morreram afogados.
Já o dia ia alto quando os sobreviventes foram avistados pelo pesqueiro Virgem das Graças, do Porto de Viana, que nos içou para bordo e nos prestou os primeiros socorros.
Rumámos em direcção a Viana, onde um mar de gente nos aguardava, ansiosa por notícias. Foi um momento indiscritível de dor, vivido pelos familiares daqueles cuja sorte não deixou regressar.
Quanto a mim, depois de alguns dias de recolhimento e algum pesadelo, voltei à faina da pesca, no barco “Mártir S. Sebastião”.

João José Matias

Tragic Night at the seaside of Mueda

One day whilst on a fishing expedition out in the Northern Sea in the Galician waters, the narrator’s vessel was hit by a cargo vessel named “Byard” which took the life of a few of the crew members. After a few long hours they were rescued by a homeland fishing boat and taken home. It was a sad moment in his life but life kept on going, so he ended up going back to the sea after mourning his fellow fishermen.

05/03/2007

HISTÓRIA DA MINHA VIDA (I)

Estávamos no dealbar do ano de 1947. Seguia o mês de Janeiro no seu 12º dia, e eis que na tarde desse dia, solarenga mas esfriada, nascia, na freguesia de Folhadela, concelho de Vila Real, o protagonista desta história que estas linhas pretendem revelar.
No seio de uma família humilde, iniciei então os primeiros passos. Mas, porque os tempos que corriam, e o local da minha origem não dava garantias de uma subsistência familiar mínima, os meus progenitores partiram à procura de garantias de uma vida melhor, deslocando-se para uma localidade próxima, para trabalharem (o meu pai como pedreiro, a minha mãe como doméstica) nas obras das minas de extracção de ferro, existentes na fralda norte da serra do Marão, mais concretamente na localidade de Vila Cova, freguesia da Campeã, também do concelho de Vila Real. Tudo isto aconteceu, já eu tinha a idade de cinco/seis anos.
No entanto, esta situação foi algo passageira, nem sequer durou 1 ano. Daqui, a família deslocou-se para a localidade de Stº António da Granja, no concelho de Penedono, para trabalharem também nas obras, mas desta feita, numas minas de extracção de ouro, que ali eram exploradas desde o início dos anos 40. Nesta localidade, iniciei a instrução primária até à 3ª classe, cujo exame conclui, no final do ano lectivo de l956/57. Lembro-me que naquela terra, fazia sempre muito calor na Primavera/Verão e muito frio no Outono/Inverno, verificando-se nevões tão fortes, que por vezes atingiam cerca de 1 metro de altura. Foi aqui que comecei por aprender as primeiras traquinices, tais como andar de burro, jogar ao “pateiro”, (uma espécie de “baseboll” dos pobres) apanhar bichos da seda, nadar no ribeiro, e no tempo próprio, trepar às cerejeiras, que ali eram abundantes, para comê-las. Lembro-me de uma altura em que as cerejas eram já escassas, e por isso mais apetecíveis, trepei de tal maneira para a ponta de um ramo, que este se partiu e eu vim parar ao chão. O meu pai quando chegou do trabalho e soube do sucedido, colocou uma vara junto à árvore, e concluiu que a queda foi de mais de 4 metros. Felizmente nada de grave me aconteceu, apenas um grande susto.
No tempo da neve, muito abundante entre os meses de Novembro a Fevereiro, também dedicava parte dos meus tempos livres a apanhar pardais nos rolheiros de palha onde estes afluíam em grandes bandos, à procura dos grãos de centeio e de trigo, que ficavam nas espigas. Na região, predominava sobretudo o cultivo de cereais, nomeadamente centeio e algum trigo, castanha, batatas e legumes, e a criação de inúmeros rebanhos de ovinos e caprinos, que para além da boa carne, forneciam o leite, indispensável para o fabrico do bem conhecido Queijo da Serra, obtido de forma artesanal, de óptima qualidade.
Porque nesta altura, teve início um período de alguma crise de trabalho, a família viu-se obrigada a regressar à terra natal e ali fui matriculado na Escola Primária de Folhadela, tendo no ano lectivo de 1957/58 concluído o exame da 4ª classe. Nesta data, o meu pai arranjou trabalho no Departamento de Obras dos Caminhos-de-ferro Portugueses, destacado para a Secção do Pocinho, na linha do Douro, onde se manteve até ao ano de 1967. A minha mãe, como habitualmente, manteve a responsabilidade das lides domésticas.
Pese embora ter revelado durante a instrução primária faculdades bastantes para prosseguir os estudos no ensino secundário, e disso os meus pais fizessem gosto, preferi ir aprender uma profissão, pois era grande a vontade de contribuir para o bem estar familiar, até porque entretanto, a família tinha aumentado.
O meu primeiro trabalho, com 12/13 anos, foi num estabelecimento de venda e consertos de relógios, que existia no Largo do Pelourinho, em Vila Real, mas que durou apenas uns escassos 6 meses. Abandonei, com alguma mágoa dos meus pais, porque senti, nessa altura, ser alvo de alguma exploração, uma vez que, para além de não ganhar qualquer salário, era “usado” quase exclusivamente como moço de recados, com manifesto prejuízo da aprendizagem prometida, facto que contrariava em muito os meus objectivos de poder no futuro poder ganhar algum dinheiro. Uma vez livre deste compromisso, e já com 14/15 anos, por influência do meu primo Fernando Baptista (que na altura muito considerava e ainda hoje considero como um irmão), fui admitido numa oficina de marcenaria e aí comecei a aprender a profissão, que interrompi, com a ida para o serviço militar obrigatório, em Outubro de 1968.
Entretanto, a par da opção de uma profissão, e porque em mim se instalou alguma frustração, por ver alguns dos meus amigos da primária a frequentar a Escola Industrial e Comercial e até o Liceu, consultei os meus pais, no sentido de me autorizarem a proceder à inscrição de matrícula na “escola da noite”, autorização que foi obviamente concedida. Matriculei-me então no 1º ano no Curso Complementar do Comércio, na Escola Industrial e Comercial de Vila Real.
Em Outubro de 1968, fui então incorporado no Exército para cumprimento do Serviço Militar, deixando por fazer algumas disciplinas, que foram mais tarde feitas, algumas ainda como militar, e outras já na situação de disponibilidade, que ocorreu em Outubro de 1971.
Entretanto, já na situação de “apurado” para o serviço militar, fui aliciado por alguns amigos, para fugirmos à tropa e ir clandestinamente para França, beneficiando eu da cumplicidade da minha mãe e do meu pai que nessa altura também era emigrante. Apesar de toda a preparação, a aventura não chegou a consumar-se. De facto, a esperança de poder voltar são e salvo da guerra para onde inevitavelmente iria ser atirado, levou-me a desistir dessa aventura, decisão da qual nunca me arrependi. Os amigos que levaram por diante essa aventura, felizmente foram bem sucedidos – livraram-se da guerra –, regressaram à terra natal logo após a revolução de Abril, todos muito bem de vida.
A minha incorporação aconteceu em 21 de Outubro de 1968. Depois da passagem por Quartéis como o Regimentos de Infantaria n.º 13, em Vila Real, de Artilharia Ligeira n.º 4, em Leiria, e Escola Prática de Serviço de Material, em Sacavém, fui mobilizado para servir em Moçambique no Batalhão de Caçadores n.º2 881, formado no Quartel de Caçadores n.º 10, em Chaves, com passagem também, antes do embarque, pelo Campo Militar de Santa Margarida.
Embarquei no navio, Niassa a 12 de Agosto de 1969, no Cais de Alcântara, em Lisboa, numa viagem de 30 dias, com passagem pelas cidades de Luanda, Lourenço Marques, Beira, Nacala e finalmente Porto Amélia, tendo daqui seguido em coluna motorizada até Macomia, em pleno coração de Cabo Delgado, local de aquartelamento da minha Companhia: CCS – Companhia de Comando e Serviços. As três Companhias operacionais, que compunham o Batalhão, foram sediadas nas localidades do Chai, Mataca e Serra do Mapé. Em Macomia, permaneci cerca de 15 meses, tendo os restantes 9 meses, sido passados na cidade de Nampula, no Comando de Sector.
Durante a minha estada, lembro apenas os bons momentos passados nos bailes do “marrebenta”, no Bairro da Metaculiua, conhecido pelo lugar de todas as culturas, dada a sua mestiçagem, onde até o próprio nome por vezes se esquecia, tal era a intensidade da música e dos bons sabores gastronómicos.
Foi desta cidade, que fiz a viajem de regresso, no mesmo navio Niassa, com chegada a Lisboa, em meados de Setembro de 1971,
No início do ano de 1972, com o Serviço Militar cumprido e com as habilitações conferidas pelo Diploma do Curso Geral do Comércio, que entretanto conclui, concorri para várias instituições, nomeadamente bancos e outras empresas, para além de diversos serviços do Estado. Dentre muitos dos pretendidos, fui chamado em Outubro de 1972, para frequentar o primeiro estágio de acesso à carreira de Inspecção, na então Inspecção-Geral das Actividades Económicas, (actual ASAE-Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica) departamento do Ministério da Economia.
Concluído o primeiro estágio em Maio de 1973, fui colocado na Delegação Distrital de Viana do Castelo, onde exerci funções até 31 de Julho de 2003, tendo nesta data, sido aposentado com a categoria de Inspector Técnico Principal. Tive durante a minha carreira várias oportunidades de transferência para meios mais desenvolvidos do que era Viana do Castelo, nomeadamente, Lisboa e Porto, mas nunca me deixei seduzir por eventuais melhorias, quase sempre muito pouco condizentes com o “stress”, provocado com vida nesses meios.
A adaptação à cidade foi bastante facilitada, por muitas e boas amizades que pude fazer logo nos primeiros tempos em que vivi hospedado ma Residencial Bela Terra, amizades que ainda hoje são bonitas realidades.
Entretanto, no final do ano de 1974, casei com uma Técnica de Laboratório, do Centro de Saúde de Viana do Castelo, que conheci no calor revolucionário do 25 de Abril. Do casamento nasceram duas raparigas, hoje com 31 e 29 anos, licenciadas em Contabilidade e Administração pelo Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto e em Engenharia Zootécnica pela Universidade de Évora.
Tendo muito pouco tempo livre, pelas funções que exercia na função inspectiva, não pude dedicar-me muito às questões de cidadania, que eu sempre considerei muito importantes na vida do cidadão. Todavia, porque a modalidade de hóquei e Patins, despertou sempre em mim alguma curiosidade, aceitei, em 1981, fazer parte da Direcção da Associação Juventude de Viana, à data a disputar o Campeonato Nacional da 1ª Divisão. Por lá andei até à época de 1986/87, tendo ocupado cargos como Secretário da Direcção e Vice-Presidente, para terminar como Seccionista responsável pelo escalão de Juniores, cuja equipa foi vice-campeão nacional em 1985/86 e finalista nos play-of no ano seguinte, com equipas como o Benfica, F.C.Porto, Sporting , entre outros. Foram por vezes dias de muitas angústias e tristezas, por manifesta falta de meios e recursos financeiros, mas também de muitas alegrias, e muita amizade de permeio. Não esquecer, que pela Juventude de Viana, passaram alguns dos melhores jogadores do mundo, que representaram grandes clubes não só nacionais como estrangeiros. Enfim, recordo aquele clube, como uma Escola de virtudes, que continua a dar grandes alegrias à sua massa associativa em particular, e às gentes de Viana em geral.
Ainda como membro da Direcção, chefiei a comitiva que acompanhou a equipa nas deslocações a Barcelona e Nantes, onde a Juventude disputou jogos da Taça Europeia – CERES. Actualmente, sou apenas um dos muitos associados, juntamente com a minha mulher e filhas, tendo, tanto eu como as minhas filhas, recebido já o Emblema dos 25 anos de Associados.
Até ao momento em que escrevo estas linhas, apesar de algumas vicissitudes próprias de uma vida já tão longa de quase 60 anos, sinto-me absolutamente feliz, não só pelo que de bom já me aconteceu, mas também por muitas coisas que ainda pretendo realizar, assim o corpo e o espírito me ajudem.
Contada de forma simples e desinibida, é esta “A história da minha vida”.
Octávio Pires

HISTÓRIA DA MINHA VIDA (II)

(Festas de Santa Marta de Portuzelo - Agosto.1949)


Nasci na rua do Loureiro, na freguesia de Monserrate em Viana do Castelo a trinta um de Janeiro de mil e novecentos trinta e dois.
Meu pai era Guarda-fiscal minha mãe doméstica, nasceram cinco filhos, três raparigas e dois rapazes.
A minha infância foi passada a brincar com os meus irmãos. Recordo-me de um dia meus pais nos felicitarem com uma ida ao circo. No dia seguinte resolvemos fazer um circo entre nós em casa, cada um fazia um número que queria, vestimo-nos de artistas, em volta da cinta enrolamos os cortinados de renda que se usavam nos louceiros. Minha irmã mais nova fazia ginástica e até conseguia por os pés atrás da cabeça, era uma artista completa; a do meio com uma galinha que estava choca fazia as suas habilidades; a mais velha era a dona do circo, eu e o meu irmão dávamos cambalhotas e saltos. Mas nem tudo era magia e fantasia, a certa altura entra em cena o Guarda-fiscal (meu pai) e com o cinto na mão desfez o circo todo. Ficamos com algumas lágrimas nos olhos, mas depressa inventávamos uma outra brincadeira e seguíamos em frente.
Numa outra altura, lembro a oferta que me fizeram de um cão, ainda pequenino, fiquei entusiasmado, mas depressa esse regozijo se desvaneceu, meu pai quando chegou a casa e viu o cão, deu-me logo um ultimato, logo quando regressar do trabalho não quero ver o cão em casa. Eu convenci-me que arranjava solução. Resolvi então escondê-lo num armário, porém os gemidos do animal rapidamente nos denunciaram. Meu pai, zangado por não ter obedecido, pegou num alguidar grande e como passava um regato perto do quintal, meteu-o na água com o alguidar em cima. Mas eu, mais uma vez não me dei por vencido, fui à volta do quintal, sem ele ver, levantei o alguidar e tirei o cão, verifiquei que ainda estava vivo, tentei escondê-lo num outro local seguro, mas mais uma vez fomos denunciamos, o pequeno cão, assustado com tudo que via à sua volta começou a latir. Foi o fim dele, meu pai ouviu, levou-o e enterrou-o vivo, foi um desgosto enorme!
Terminado o ensino primário fui para escola Comercial de dia, estávamos em plena segunda guerra Mundial. Aborrecido, desisti da escola, fui trabalhar na arte de alfaiate. Certo dia fizeram-me uma brincadeira que não apreciei, mandaram-me a outro alfaiate buscar a pedra de afiar as agulhas, quando lá cheguei embrulharam-me uma pedra num jornal, cheguei à rua e vi o que tinha o embrulho, aborrecido com a brincadeira, deixei ficar a encomenda à porta da alfaiataria e não apareci lá mais.
Fui estudar para a escola da noite, frequentei o segundo ano do curso do Comércio e aos 14 anos fui trabalhar para os Estaleiros Navais, de Viana do Castelo, como aprendiz de electricista.
Aos 20 anos fui chamado para cumprir o serviço militar para o serviço Militar tendo aí permanecido em Engenharia 2 na cidade do Porto, depois fui para a Escola Prática Engenharia em Tancos, onde tirei a especialidade Pontes fluviais e também de condutor auto. Voltei a Engenharia 2 no Porto para fazer a escola de cabos e fui promovido a primeiro-cabo, regressei para Tancos onde permaneci até ao fim do serviço Militar.
Em 1955 voltei a ser chamado para manobras Militares em Santa Margarida, fui anexado a uma companhia de reabastecimento. Aqui recordo uma situação engraçada que me aconteceu. Um dia mandaram-me a Camarate em Lisboa buscar explosivos com uma camioneta pesada G. M. C., que existia no exército, tivemos que fazer a viagem de noite. Perto de Santa Margarida na povoação de Vale de Cavalos, numa recta à minha frente ia uma carroça puxada por um burro, antes de ultrapassar fiz sinal de luzes, que ia ultrapassar, esses sinais eram feitos com os pés, ao chegar perto da carroça que ia sem luz, os meus faróis apagaram-se totalmente porque se desfez os pedais dos sinais, ficou tudo escuro, travei a fundo: o burro assustou-se, atravessou a estrada, com a carroça carregada de legumes e hortaliças: cenouras, repolhos, batatas, que ia para a Feira do Tramagal. Espalhou-se tudo na valeta, o burro, o dono, a carroça e os legumes. Diz-me o Furriel que ia ao meu lado: - mataste o burro! Felizmente estava tudo vivo, menos as couves, e o velhote a gritar: ai o meu burrinho, ai o meu burrinho! Endireitamos tudo, levantamos o burro e a carroça, trouxemos tudo para a estrada juntamente com o velhote, só havia algumas couves estragadas, mais nada, foi só um susto!
Quando acabaram as manobras militares regressei ao Estaleiros de Viana do Castelo e aqui fui progredindo na escala profissional, de oficial de terceira passei mais tarde a oficial de segunda, depois a oficial primeira, a especializado B, a especializado A, a Técnico Fabril e a Técnico Industrial.
Participei na construção de muitos navios, alguns bastante sofisticados em tecnologia. Como por exemplo, o famoso Gil Eanes – navio hospital. O meu irmão que andava na altura na pesca do bacalhau, na Gronelândia, foi um dos primeiros a ser lá operado.
Nos Estaleiros construíam-se navios dos mais diversos tipos: para a pesca do bacalhau; para Marinha de Guerra; porta contentores; cargueiros, como o navio Porto, navio Malange; navios químicos, para a Suécia e Brasil; navios de passageiros, como o Lobito; navios de transportes de carros e passageiros para Itália e Madeira e também para União Soviética e muitos outros. Faziam-se também muitas reparações quer nos Estaleiros de Viana mas também em Leixões e Lisboa.
Só numa reparação, em Lisboa estive oito meses. Foi quando o navio Cidade Aveiro virou em Aveiro e foi entregue para reparação à Firma Parry Son. Como eu tinha andado na construção deste navio, fui destacado para esta empresa para participar na reparação. Cheguei também a realizar várias provas de mar, para entrega de navios, algumas delas atribuladas, tanto aqui em Viana, como Lisboa e Setúbal. Algumas corriam bem, outras nem por isso, como aquela passada em Aveiro num navio que era para a Dinamarca, durante a prova ficamos sem leme porque este ficou ferrado a um bordo, andamos à deriva até aparecer o reboque de salvamento, foram momentos de alguma angústia e medo.
Casei aos 24 anos pela primeira vez, desse casamento nasceram dois filhos, uma rapariga e três anos depois um rapaz. Foram anos difíceis, o regime não permitia grandes liberdades nem grandes meios de sobrevivência. A este propósito lembro-me de uma situação ocorrida em mil novecentos e sessenta e dois quando trabalhava no navio de guerra S. Gabriel. Nessa altura a empresa precisava que fizéssemos horas extras, mas o dinheiro que nos pagavam era muito pouco, por isso resolvemos reclamar um aumento, como o pedido não foi aceite, deixamos de trabalhar. Chamaram a PIDE e fui preso com os colegas. Foi um dos piores dias de minha vida, a minha esposa nessa altura sofreu muito. Fiquei preso oito dias, por fim como não havia nada que me incriminasse mandaram-me embora.
Estive casado, trinta e três anos. Reformei-me, por invalidez, com cinquenta e seis anos, com a categoria de técnico industrial. Um ano depois em mil novecentos e oitenta e nove, minha esposa faleceu subitamente do coração. Três meses depois faleceu o meu filho, tinha então vinte e nove anos, com a mesma doença que a mãe tinha, pois era hereditária. Foi o terceiro golpe na minha vida.
Em mil novecentos e noventa, com cinquenta e oito anos, estando sozinho a viver, pois minha filha estava casada em Lisboa. Voltei a casar novamente, com a Maria José Coutinho, mais conhecida por Zeza, com quem vivo e sou muito feliz. Com ela aprendi a fazer Arraiolos, actividade que para além de ajudar a passar também contribui para o stress.
Também fui árbitro de futebol, durante sete anos, de mil e novecentos e sessenta e seis a mil novecentos e setenta e três, mas como não partilhava com certas injustiças de alguns dirigentes, abandonei. Pertencia à Associação de Arbitragem de Braga, mais tarde passou para a Associação de Viana do Castelo, conheci lá bons amigos, tanto em Braga como em Viana, alguns já faleceram.
Agora com setenta e cinco anos, meteram-me nesta alhada de aprender a lidar com computadores, mas não está sair nada mal. Já falo com o meu neto e também com os meus amigos.
Não sou crente nem ateu sou apenas um homem que à procura de Deus reza!
Manuel Gonçalves






HISTÓRIA DA MINHA VIDA (III)

O meu nome é João Branco, nasci na freguesia de Santa Maria Maior, concelho de Viana do Castelo, fiz os meus estudos preparatórios e frequentei o curso de Serralheiro Mecânico, que não cheguei acabar.
Aos 16 anos fui fazer, exame psicotécnico aos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, entrei nesta empresa no dia 1 de Outubro de 1966, como aprendiz de serralheiro mecânico, e fui trabalhar no serviço de mecânica de bordo. O primeiro barco em que trabalhei era um barco que estava na Doca Comercial a descarregar sal para a Empresa João Alves Cerqueira, este barco depois de reparado saiu rumo ao Algarve, por altura da costa Vicentina debaixo de forte nevoeiro, naufragou mas a tripulação foi toda salva.
Depois estive a trabalhar na construção de um navio para a nossa Marinha de Guerra, Fragata Escoltador Oceânico “Almirante Magalhães Correia”, neste navio trabalhei dois anos. Todas as válvulas que o navio levou passaram pelas minhas mãos pois como eu tinha uma letra bonita depois de testadas e aprovadas pelos fiscais da marinha eu, a tinta, escrevia o numero da válvula e dava baixa da mesma.
Aos 20 anos ingressei na vida militar, começando a minha odisseia na tropa.
No dia 20 de Julho de 1970, ingressei no Regimento de Infantaria 7, em Leiria depois da apresentação e de termos dado as vacinas somos levados, para uma arrecadação aonde nos são distribuídas as diversas fardas e botas, todo este material era distribuído aleatoriamente, e depois nós tínhamos que trocar uns com os outros de modo a conseguir os tamanhos adequados. Surpreendido, vejo que a roupa que me foi atribuída não me servia, dirigi-me então à arrecadação para solucionar o problema, mas a resposta que me deram foi me desenrascasse. Regresso à caserna, ouço o toque do jantar, como a roupa não me servia quando chego à parada para formar o oficial de dia dirige-se a mim e pergunta-me se ainda não tivera tido tempo para me fardar, eu respondi-lhe que a roupa não me servia, ele começou a rir-se e disse-me para ir à arrecadação e trocar de roupa, e que não aparecesse novamente vestido à civil. Percebi bem o que ele dissera, mas tive de lhe contar o que havia acontecido, que já tinha ido à arrecadação, mas que não havia roupa que me servisse.
Solução surpreendente, a partir daí nunca mais quiseram saber, embora eu fosse reclamando dizendo-lhes que estava a dar cabo da minha roupa, e que não podia ser, disseram-me que iam estudar o assunto, o certo é que o tempo foi passando e eles não resolveram nada, mas também fiz valer a minha posição, não tinha formaturas, vinha ao fim-de-semana à civil, quando íamos dar tiro para carreira de tiro que ficava a 10Km do quartel eu ia de camião, havia certos exercícios que não realizava, etc. Quando aparecia o Director de Instrução cuja patente era Brigadeiro, mandavam-me esconder para que ele não me visse.
Acabei a recruta no fim de Setembro de 1970, depois de ter jurado bandeira, e farda nem vê-la. Fui avisado que ia tirar a especialidade de operador de radar de Artilharia Antiaérea na RAAF (Regimento de Artilharia Antiaérea Fixa) em Queluz.
Saí de Leiria com guias de marcha para me apresentar no quartel em Queluz, uma vez chegado ao novo quartel, perguntaram-me porque ia vestido à civil, então eu disse que no quartel em Leiria não tinham farda para mim e que não me resolveram o problema, no dia seguinte comecei a instrução e as aulas da especialidade que ia tirar, quando chegou altura das formaturas eu apresentei-me na parada com a roupa que tinha, para meu espanto começam a chamar-me guarda-fiscal (a minha roupa era cinzenta, parecida com as dos guardas-fiscais), a partir daí o meu comandante de Pelotão disse-me que iam resolver o assunto, o tempo foi passando e farda nem vê-la, acabei a especialidade em Dezembro.
Fui colocado noutro quartel CIAAC (Centro de Instrução de Artilharia Antiaérea e de Costa) que ficava em Cascais. Quando me apresentei, na segunda-feira, e quando tocou para formar apresentei-me na parada, nessa altura estava a entrar o comandante e vendo um civil, na formatura, disse ao oficial de dia, que me mandasse ir ter com ele, assim foi, chegado ao gabinete dele, ele perguntou-me porque não estava fardado, então eu disse-lhe que não tinha porque pelas unidades por onde tinha passado não tinham farda que me servisse, então mandou chamar o sargento responsável pelo fardamento e perguntou-lhe se tinha farda para mim, porque caso não houvesse teria de ir ao Casão Militar para me fazerem uma farda. Foi o que aconteceu, fomos a Lisboa ao Casão Militar, tiraram-se as medidas e passada uma semana chegou a bendita e assim estive 3 anos no exército.

João Branco

HISTÓRIA DA MINHA VIDA (IV)

Chamo-me Manuel Gomes Soares, tenho 59 anos sou reformado e vou contar a história da minha vida. Conclui o ensino primário aos 11 anos de idade por sinal com bastante aproveitamento pois fui considerado com outro colega os melhores alunos da escola, como tal foi-nos atribuído um prémio em dinheiro de cento e quarenta escudos, fiquei radiante de alegria. Naquela altura, no ano de 1958, esse prémio em dinheiro representava um valor muito importante, era uma época que se vivia com muita dificuldade, corri desesperadamente para casa dos meus pais para lhes dar a noticia e da felicidade que eu sentia, eles ficaram muito satisfeitos e alegres pelo acontecido, claro que também foi uma ajuda para eles.
Gostaria de ter continuado os estudos, era bom aluno, e claro que futuramente poderia ter uma vida melhor, só que os meus pais eram muito pobres e não tinham possibilidades de darem continuidade aos meus estudos. Tive que ir trabalhar para os ajudar.
Assim com 11 anos de idade, logo após a saída da escola, arranjaram-me um emprego numa camisaria. O trabalho que eu foi desempenhar não era de grande responsabilidade nem podia ser porque eu nada sabia fazer, o meu papel era entregar as camisas aos clientes e fazer os recados necessários, o meu patrão pagava-me um ordenado de vinte e cinco tostões por dia, não era muito, mas sempre era uma ajuda para os meus pais. Hoje em dia é completamente diferente, os filhos quando trabalham ganham para eles, não dão dinheiro nenhum aos pais, por um lado ainda bem que assim é, mas por outro também não será tão bom assim porque os filhos com dinheiro nos bolsos por vezes metem-se em coisas que não devem!
Continuei trabalhando até atingir os 14 anos de idade, a partir daí começou uma nova fase da minha vida, nessa altura já podia trabalhar legalmente, pois era a idade permitida por lei. Como o meu irmão mais velho já se encontrava empregado na melhor empresa do conselho de Viana do Castelo, que era os estaleiros navais de Viana, fez um pedido ao chefe de serviço de pessoal para me arranjar trabalho na empresa. E assim fui integrado na empresa.
Comecei uma nova carreira na minha vida, no início, fruto da minha inexperiência, tive algumas dificuldades em me adaptar ao novo trabalho.
Foi no dia 4 de Abril de 1961 então que eu entrei para os estaleiros navais de Viana, fui para a escola de soldadura aí comecei a dar os primeiros pingos, andei um mês a aprender, durante esse tempo como ainda não tinha salário a empresa na hora da refeição fornecia-me um pão e um prato de sopa no refeitório e não pagava, No fim desse mês eram escolhidos os melhores e os restantes iam para casa, fui seleccionado e passei a integrar os quadros da secção de soldadura. Comecei como aprendiz ganhando um salário de nove escudos e vinte centavos por dia, ainda me lembro de minha pobre mãe, hoje falecida, ia todos os dias levar-me o almoço, se é que se podia chamar almoço, para que não tivesse de pagar na empresa a refeição. Tanto sacrifício para nada, mas a vida nessa altura era muito difícil para quem não tinha nada. Comecei a minha carreira subindo degrau a degrau de aprendiz a praticante. Aos 18 anos já era oficial de 3º de soldador foi nessa altura que aconteceu o melhor da minha vida até à data.
Naquela época existia a Mocidade Portuguesa organização que fazia os concursos nacionais e internacionais de trabalho, os Estaleiros navais forneciam os operários de várias profissões mais competentes para participar em representação da empresa, a escola comercial e industrial hoje escola Secundária de Monserrate fornecia os alunos mais aplicados de várias áreas. Não é que foi eu o escolhido para ir representar a empresa na área de soldadura?! Fiquei tão contente que nem sei explicar a enorme alegria que na altura senti, a partir daí passei um período de preparação na empresa para que quando chegasse o dia de prestar provas estar preparado o melhor possível para não deixar ficar mal a empresa. Tenho a agradecer ao meu mestre de secção pelo empenhamento que teve em me ensinar todas as técnicas de soldadura, era um grande profissional com conhecimento profundo da profissão hoje em dia há poucas pessoas com tanto conhecimento.
Chegou o dia de ir prestar provas a Lisboa eu e os meus colegas da empresa assim como também os colegas da escola, acompanhados por um professor da escola comercial e industrial, embarcamos na estação de Viana em direcção a Lisboa. Ficamos instalados na INATEL, na costa da Caparica, lá estivemos durante uma semana, foi o tempo que durou o concurso, correu tudo muito bem para mim, tanto que consegui ficar em primeiro lugar no meio de tantos concorrentes, foi muito bom!
Na consequência desta vitória ficou logo seleccionado para representar Portugal e a empresa na Escócia, estava eufórico, foi uma experiência que jamais esquecerei e que me marcou profundamente.
Os tempos nessa altura eram de muita dificuldade, mas eu estava a viver momentos inesquecíveis pois saber que ia representar o meu país no estrangeiro era um sonho que jamais o conseguiria de outra forma. Juntamente com um aluno da escola comercial e industrial seríamos os dois de Viana que iríamos representar o país nessa especialidade. A partir daqui a empresa, através do meu mestre de secção, colocou-me num lugar para que eu fizesse uma preparação mais completa, tive que aprender desenho e fazer uma reciclagem em soldadura estas duas coisas eram muito importantes pois eu não só ia soldar como também fazer a montagem das peças, portanto saber estas duas coisas eram na realidade fundamentais para assim ter uma boa prestação na participação das prova.
Chegou o dia de partir para Escócia mas antes a Mocidade portuguesa deu-nos um fato a mim e ao meu colega da escola, todos tínhamos que ir vestidos da mesma forma, na empresa fizeram-me uma mala muito bonita envernizada com o nome da empresa escrito onde ia levar a ferramenta. Não há dúvida, eu sentia-me todo vaidoso, era um momento marcante na minha vida. Lá embarcamos para Lisboa, onde nos íamos juntar aos restantes concorrentes, fomos para o aeroporto da Portela, aí embarcamos num avião enorme, para mim era um deslumbramento, pois nunca tinha visto um avião nem tão pouco viajado. Lá fomos para a Escócia, tivemos uma paragem em Londres de umas horas, depois seguimos até ao nosso destino. O primeiro dia foi para nos instalarmos no hotel e conhecer o local onde iríamos prestar provas. No dia seguinte iniciaram-se as provas, tínhamos um intérprete Espanhol, comecei por montar uma peça mas aí tive azar pois comecei por montá-la ao contrário, falta de atenção. O intérprete veio o à minha beira e disse-me que a peça estava a ser mal montada. Tive de desfazer tudo e voltar a montar de novo, perdi bastante tempo e atrasei-me um pouco em relação aos outros concorrentes, mas não estava tudo perdido, voltei a ter ânimo e ainda consegui acabar a peça primeiro do que outros concorrentes. Apesar disso, o engano prejudicou-me um pouco no resultado final, mesmo assim ainda consegui ficar em terceiro lugar. Penso que não foi mal de todo, pois era uma prova de nível internacional, tive direito a uma medalha de bronze.
Tudo foi muito bom para mim mas no meio de tudo isto há uma peripécia que eu quero contar, como é natural, depois das provas isto é, durante uma semana eu andava quase sempre com o colega de Viana. Depois de jantar normalmente íamos quase sempre dar uma volta pela cidade, acontece que um belo dia à noite, lá fomos nós dar uma volta, e quando nos preparávamos para regressar ao hotel chegamos a determinada rua onde existia um cruzamento e ficámos na dúvida, e então eu dizia que a rua que nos levaria ao hotel era pela direita, o meu colega dizia que era pela esquerda, conclusão cada um de nós quis manter a sua posição e então foi cada um para seu lado. Quem tinha razão era o meu colega, eu andei durante umas horas perdido, não sabia como chegar ao hotel. O que me valeu foi um mapa da cidade que me tinham dado, onde estava assinalado o meu hotel, mas havia ainda a barreira linguística, eu não sabia falar inglês. Resolvi falar com um guarda nocturno que ali ia a passar, peguei no mapa e com gestos disse para onde queria ir, ele também da mesma forma, disse-me para esperar até passar um táxi e assim dali a pouco mandou parar um táxi falou com o taxista que me levou ao hotel. Quando lá cheguei o meu colega já se encontrava na cama, acordou e disse-me, afinal quem tinha razão era eu, concordei, quem tinha razão era ele, pedi-lhe desculpa pela minha atitude. A verdade é que houve ali uma certa teimosia da minha parte e ninguém quis dar o braço a torcer, são coisas que acontecem. Não foi uma experiência muito agradável, senti algum receio, estava numa terra desconhecida!
Chegou o dia de voltarmos a Portugal, o sonho tinha chegado ao fim, lá embarcamos no avião e regressamos, voltei à empresa para continuar a minha carreira, fui chamado ao chefe de serviço de pessoal, que me comunicou que tendo em conta os bons serviços que eu tinha prestado e o bom nome que tinha dado à empresa, quer a nível nacional quer internacional, iria ter um aumento e uma subida de categoria de oficial de terceira para oficial de segunda. Até à data tinha sido o maior aumento que jamais me tinham dado, ganhava nessa altura vinte e cinco escudos por dia passei a ganhar trinta e seis escudos, sem dúvida que a empresa reconheceu o meu empenho naquilo em que tinha participado, e passei a ser uma pessoa considerara por todos. Com os passar dos anos, com mudanças de chefias, tudo isso foi esquecido, contudo nunca deixei de ser aquilo que era, continuei sempre a dar o meu melhor em prol da empresa, nunca me negando a tudo aquilo que me pediam.
Outro episódio importante na minha vida foi o tempo passado na tropa. Entrei no ano de 1968, em Braga, no regimento de infantaria nº 8, ia começar uma nova etapa na minha vida, quando cheguei ao quartel a primeira coisa que me mandaram fazer foi ir levantar o fardamento militar e cortar o cabelo muito curto como se costuma dizer uma carecada. Comecei a fazer a recruta e a cumprir tudo que me mandavam fazer, eram muito exigentes havia uma disciplina tremenda tudo era para cumprir, caso contrário seríamos castigados, até para receber o pré tínhamos que ir todos aprumados, cabelo cortado, botas engraxadas, farda bem limpa e passada. Continuei a tropa até ao momento em fui chamado para ir para a Guiné. Embarquei no navio Niassa, foi uma tristeza, a despedida dos familiares, havia choros, beijos, abraços, gritos, era de facto uma mágoa muito grande, nunca tinha visto uma coisa assim. As pessoas sabiam que íamos para a guerra e que podíamos ir e não mais voltar.
Íamos no navio como a sardinha na canastra, eram milhares de militares espalhados em camaratas, nos porões, íamos muito mal instalados, mas era carne para canhão que ia para a guerra e não se podia reclamar.
Hoje em dia estamos em liberdade pode-se reclamar tudo, mas naquela altura estávamos em regime de ditadura era proibido reivindicarmos fosse o que fosse. Lá chegamos ao nosso destino. Logo que desembarcamos, fomos distribuídos em grupos para várias localidades inclusive para o mato, eu e os meus colegas rádio telegrafistas fomos para o quartel general de Bissau, ali ficamos por uns dias, depois fomos mandados integrar uma coluna militar e daí fomos para várias localidades no meu caso foi para Bissorá, devo confessar que ia cheio de medo na coluna militar por onde íamos passar, eram zonas que os terroristas atacavam muito, mas com alguma sorte lá chegamos a Bissorá onde fui colocado no posto de rádio e comecei a fazer serviço de dia e de noite em turnos.
Tenho que dizer o seguinte, toda a gente sabia que a Guiné era uma colónia das mais perigosas, havia ataques constantemente, mas a sorte esteve do meu lado pelo facto de ser radiotelegrafista do STM não saíamos do aquartelamento, estávamos fixados no posto, mesmo assim vou contar um incidente. Uma bela noite, estava a fazer o turno da noite e pelas três horas da manhã comecei a ouvir tiros por todo o lado, fiquei com um medo tremendo, imediatamente fugi para o abrigo e ali fiquei até que tudo estivesse terminado. Era uma das vantagens que tinha em ser telegrafista nem sequer arma tinha distribuída, felizmente nas vezes em que o aquartelamento foi atacado nunca aconteceu nada de grave, mas não deixava de ser um grande susto.
Reconheço que enquanto estive na Guiné tive muita sorte em não me ter acontecido nada, de resto tudo não deixava de ser uma rotina diária.
Havia, ainda, um outro aspecto muito desagradável, o calor era muito, havia muitos mosquitos o que obrigava a termos na cama um mosqueteiro para protecção, muitas vezes tomávamos banho com a chuva a cair, o clima era realmente muito quente. Mantive-me durante quinze meses nesta localidade, entretanto veio uma ordem militar e fui destacado para outra localidade, chamada Manssabá, fui chefiar o posto de rádio. Era uma zona muito perigosa, praticamente era atacada quase todos os dias, muita sorte tive, graças a Deus não é por acaso que só lá estive quatro meses, e por isso por estar a chefiar o posto de rádio num local tão perigoso deram-me um louvor.
Voltei a Bissau, estava quase no fim da comissão de serviço, voltei a encontrar os meus colegas que tinham vindo comigo no mesmo navio, foi uma alegria. Chegou o dia de voltar ao convívio dos meus familiares, a minha comissão de serviço tinha terminado, embarcamos de novo de regresso a Lisboa fui directamente para o Quartel da Ajuda para entregar todo o fardamento e passar à disponibilidade, era o ano de 1971, tinha passado 36 meses de serviço militar.
Enfim mais uma vez consegui ultrapassar esta difícil e complicada etapa da minha vida, voltei a casa dos meus pais, que ficaram muito contentes por ter regressado, foi uma alegria muito grande. Regressei à minha empresa para continuar o meu trabalho e continuar o meu futuro, e assim foi, os anos foram passando com bons e maus momentos.
Em 1974 casei, tinha 27 anos de idade, no mesmo ano nasceu a minha filha, foi o dia mais feliz da minha vida, em 1986 nasceu o segundo filho, um menino, é evidente que também me deixou muito feliz.
No dia 2 de Novembro do ano 2000 tinha nessa altura 40 anos de empresa passei à situação de reformado.
É assim que acabo de contar a história da minha vida.

Manuel Gomes Soares